#15 — Quando é que você fica em silêncio?
A vida moderna é organizada para impedir que nos conheçamos

‘‘Toda a infelicidade dos homens provém de uma única coisa: não saberem permanecer em repouso, sozinhos em seu quarto’’.
— Blaise Pascal.
Quanto tempo você consegue ficar em silêncio?
Lavar uma louça em total silêncio, sem ouvir aquele podcast de fofoca ou um vídeo no YouTube. Quando foi a última vez que você jantou sem assistir TikTok? Sério mesmo.
Será que você dá espaço para os seus pensamentos ou apenas deixa eles de lado o tempo todo? Estar em completo silêncio é uma atividade desafiadora quando a realidade possui tantos estímulos.
Menosprezamos o valor do estado contemplativo — e que pode ser um grande aliado para o nosso autoconhecimento, saúde mental e criatividade.

Eu sou uma pessoa que gosta muito do silêncio. Parte disso vem da forma como fui criada em casa: um lar religioso, onde não se ouvia música alta e ninguém nunca levantava a voz. Mas vem também, é claro, da minha personalidade.
Gosto de manhãs tranquilas, de acordar e permanecer em silêncio durante um tempo. Gosto de ouvir os pássaros que cantam nas árvores da vila onde moro. Aqui tem até galos, sabia? Em São Paulo mesmo. Louco, né? O único som que escuto enquanto escrevo esse texto é da fonte dos meus gatos, dos passarinhos lá fora e, daqui a algumas horas, do meu vizinho que toca violino.
O silêncio é algo que temia perder ao me mudar para São Paulo. A impressão que tinha é de que viveria uma loucura constante. Depois entendi que existem oásis tranquilos nessa cidade. Sempre tive condições de morar em bairros mais desenvolvidos, seguros e silenciosos. O mesmo não acontece, é claro, em locais mais pobres — onde existe uma correlação entre educação, intelectualidade e classe social. Mas isso fica para outro texto, não vou mexer nesse vespeiro agora.
Uma sociedade barulhenta, hiperprodutiva e alienada.
“O silêncio é a linguagem de Deus, todo o resto é má tradução’’.
— Thomas Merton.
Durante sete anos trabalhei em restaurante. Em um deles, onde permaneci por quatro anos, decorei todas as músicas das playlists que tocavam durante os momentos do dia. Pessoas falando, talheres caindo no chão, cachorro latindo, crianças fazendo birra, a porta da geladeira abrindo e fechando, o barulho da fritadeira, cada som das funções da máquina de espresso, pés arrastando pelo chão. Todos os sons do restaurante eu ouvia como se estivessem dentro da minha cabeça — o tempo todo.
Soma-se tudo isso ao deslocamento para o trabalho. O som do transporte público. Não por acaso, eu chegava em casa exausta e queria ficar em total e completo silêncio.
Escute o vento, ele fala. Escute o silêncio, ele responde.
Correr é um dos hábitos que adquiri nos últimos dois anos. Comecei isso timidamente, mas hoje, essa atividade é essencial para minha vida. Há alguns meses, decidi tentar algo novo: correr sem ouvir música. Sim, eu sei, parece coisa de doido. Você treina sem música? Acho que não, né?
Veja, eu sou uma pessoa que gosta de ouvir música, mas chegou um ponto onde me irritava ouvindo música durante a corrida. Eu passava de música em música, e não gostava mais de nenhuma. Renovei a playlist e coloquei algumas faixas novas, mas o sentimento de irritabilidade continuou.
Foi então que parei de ouvir música durante o meu exercício. De início pensei que não daria certo, afinal, a música agitada ajuda você a dar aquele gás. Saí pra correr sem os fones de ouvido e sem o celular. Levei só o relógio para monitorar o trajeto.
Eu não corri mais devagar, não me senti desanimada, mas aconteceu uma coisa interessante: eu consegui me ouvir.
Ouvi meus tênis tocando o asfalto, o som da minha respiração ritmada. Ouvi meus pensamentos, organizei eles dentro de suas caixinhas, tive novas ideias, pensei em novos textos e roteiros de vídeos.
Eu conseguia sentir meu corpo. Parecia que estava mais conectada a tudo ao meu redor. (Além, é claro, de ter mais presença correndo na rua, ouvir os carros e motos com mais clareza e segurança). Desde então eu parei de correr usando fones de ouvido.
A vida moderna é organizada para impedir que nos conheçamos
Thomas Merton foi um monge trapista norte-americano, que viveu no mosteiro de Gethsemani, em Kentucky. Autor de mais 70 livros sobre espiritualidade, paz e justiça social, Merton falava também sobre silêncio e autocontemplação. Já nos anos 1960, era um grande crítico a forma como levamos a vida moderna.
Para Merton, a sociedade é barulhenta, hiperprodutiva e alienada. Ele via o excesso de palavras, imagens e distrações como formas de afastamento da verdade interior. Se Merton pudesse ver o tanto que você e eu vemos todos os dias, o que ele diria?
Para o monge, o silêncio não é o vazio, mas o espaço onde a verdade pode emergir sem ruído. É um momento íntimo, onde você está sozinho consigo mesmo — ainda que seja doloroso ter ciência da própria existência em alguns dias. Esse tipo de silêncio é ativo — e não passivo, é um lugar de escuta, não de fuga.
“O verdadeiro silêncio é o repouso do espírito, e é para a alma o que o sono é para o corpo: nutrição e renovação.”
— Thomas Merton.
Merton via a contemplação como um estado de consciência desperta, onde o ego se silencia e dá lugar à experiência direta da realidade (ou de Deus). Isso tudo se perde, é claro, quando você não dá o espaço para que esses momentos aconteçam. Quando se pega preso no transporte público ouvindo fofocas alheias, quando não lava uma louça em silêncio, quando ocupa sua mente com tudo menos ao ator de ouvir a si mesmo.
Quando você tem tempo para ouvir o que o corpo e a mente tem a dizer, é quando você toma uma atitude. Entende o que a fala do chefe representou, o que aquela mensagem de texto quis dizer, como se sente quanto a vida ao seu redor.
“A contemplação é a mais elevada expressão da vida intelectual e espiritual do ser humano... é a vida em sua plena atenção, plena consciência, plena receptividade ao presente’’.
— Thomas Merton.
Em um mundo cada vez mais hiperestimulado, em que somos distraídos a todo momento e bombardeados com novas informações a cada hora, ficar um tempo em silêncio e contemplar a quietude, pode ser uma forma de se reconectar consigo mesmo, de desacelerar dessa rotina cruel e extenuante da vida moderna.
Antes de terminar, vou deixar aqui uma sugestão de música que pode ser um pouco…inesperada. Gosto muito de ouvir Ars Veritas, um conjunto musical da Universidade de Música e Teatro de Gotemburgo, na Suécia. Coloque os fones e escute de olhos fechados. É pura arte. Sinta a música percorrer o seu corpo. Obrigada, por nada.
Até a próxima.
Amei seu texto, estava pensando sobre isso ultimamente também, percebi que não consigo ficar tanto tempo em silêncio como antes, sempre temos estímulo sonoros o tempo inteiro. Acho uma reflexão muito interessante de ser falada