#39 — A multitarefa é um mito criado pela cultura da produtividade
Você jura que dá conta de tudo, né?
Imagina essa cena aqui comigo.
Você está em uma reunião online, respondendo mensagens no WhatsApp e pedindo comida no Ifood — tudo ao mesmo tempo.
Depois você almoça assistindo TikTok e scrollando o Instagram.
Na sociedade contemporânea e hiper produtiva que vivemos, ser multitarefa, dar conta de várias coisas ao mesmo tempo é motivo de orgulho. Mas chega no final do dia, você está cansado, com a cabeça cheia de pensamentos, não consegue desligar e nem dormir. Você faz isso, né? Eu aposto que sim.
No longo prazo isso resulta em ansiedade, esgotamento mental e burnout.
Os seres humanos não foram feitos para lidar com várias informações ao mesmo tempo. Isso destrói o seu cérebro. É absurdo glorificar o multitasking.
Fazer as coisas com total presença é um objetivo na minha vida. E isso envolve fazer uma tarefa por vez, sem pressa, com calma. Difícil, né? Existem diversos profissionais da saúde que estudam sobre os perigos do multitasking.
Um deles é o neurocientista Earl Miller, do MIT, que acredita que só podemos ter um ou dois pensamentos por vez. Ou seja, você consegue dividir sua atenção em pouquíssimas coisas. Quando dividimos a atenção entre mais de uma tarefa que exige raciocínio, nosso desempenho cai: erros acontecem, o resultado é mais fraco e o tempo de conclusão aumenta.
Mas em um mundo tão distraído e que empurra um monte de demandas ao mesmo tempo — isso é cada vez mais raro. Pensando nisso, eu tenho aplicado na minha rotina, quando possível, fazer as minhas tarefas com presença.
Assistir filme sem pegar no celular, lavar louça prestando atenção nos talheres e pratos que estão na pia, trabalhar em uma demanda por vez no computador, com poucas abas abertas, pra distração ser mínima.
Dessa forma, eu realizo uma tarefa por vez, com calma. E eu noto que isso é infinitamente melhor do que fazer tudo ao mesmo tempo.
Talvez você derrube os pratos na pia, talvez você não preste atenção no que o ator está falando no filme porque você está no WhatsApp. Ao realizar uma coisa por vez, eu me sinto muito mais presente e focada, e a qualidade das tarefas aumenta.
Mas eu até me sinto estranha e deslocada, porque me pego pensando naquela opinião popular de que: ‘’mulheres têm a habilidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo’’.
Será mesmo? Ou é só uma consequência do acúmulo de funções domésticas historicamente comprovado? Pense sobre isso ai na sua casa.
Como ser multitarefa afeta nosso cérebro?
Pra isso precisamos falar de novo do nosso nosso amigo Earl Miller. Ele argumenta que nosso cérebro têm uma capacidade limitada para pensamentos simultâneos.
Embora pareça que percebemos várias coisas ao mesmo tempo, na verdade nosso cérebro absorve “pequenos pedaços” de informação e reconstrói a ilusão de simultaneidade. Ou seja, você acredita que está lidando com tudo — mas não está.
Em seu artigo ‘’Working Memory Capacity: Limits on the Bandwidth of Cognition’’ (Miller & Buschman, 2015) — ele e outros colaboradores explicam que a capacidade de “manter em mente” informações, conhecida como working memory, ou memória de trabalho é pequena. Nosso “bloco de notas mental” só permite manter alguns poucos itens/objetos de pensamento ao mesmo tempo.
Essa pesquisa sugere que, em média, conseguimos processar simultaneamente cerca de 3 a 4 itens ou pensamentos distintos por vez, embora haja variação individual. Tem gente que absorve mais, tem gente que menos. E isso pode variar conforme a idade, saúde cerebral, qualidade do sono e estresse.
Quando você acha que está lidando bem entre uma tarefa e outra, entre a reunião com seu time, o pedido no Ifood e respondendo no WhatsApp, na realidade você está apenas alternando seu foco entre as tarefas — o que gasta energia, tempo e clareza mental. Você chega cansado no final do dia, né? Eu sei que sim.
Existem tarefas automáticas como andar, mastigar, ouvir música, que não demandam tanta atenção. O problema surge em ações que exigem concentração, raciocínio, criatividade ou julgamento.
Reconfiguração do cérebro
Um estudo da Cardiff University, indica que a multitarefa reconfigura nossas conexões cerebrais, reduzindo o foco e a capacidade de prestar atenção. O que pode levar a erros e acidentes. Então quando você está dirigindo, não mexa no celular nem fique checando o Waze.
A multitarefa afeta a memória
Você precisa estar presente para que as informações se consolidem em seu cérebro. Se você alterna entre uma tarefa e outra e não deixa um pequeno espaço de intervalo, você não dá chance para que sua cabeça processe as novas informações que aprendeu.
Eu percebi que era hora de começar a fazer uma coisa por vez quando comecei a ficar irritada com as minhas playlists de corrida. Sério, foi exatamente isso.
Durante a corrida, eu me preocupava muito com quais faixas estavam tocando. Aquela música não era certa pra aquele momento, eu me distraia com o som. Eu não conseguia prestar atenção na corrida por conta da playlist. Mesmo trocando as faixas, o incômodo continuou.
Então eu decidi correr sem música e foi incrível. Você já fez isso? Meus amigos acham um absurdo, porque eles dizem que não querem estar sozinhos com a própria cabeça. Eu podia ouvir meus pés tocando o asfalto, o ritmo da minha respiração. Sentia cada músculo do meu corpo. Estava conectada com a cidade ao meu redor e estava mais atenta ao trânsito. Eu estava presente.
Isso quer dizer que eu não escuto mais música correndo? Não. Às vezes escuto música, às vezes escuto podcast. Depende do tipo de treino também. Mas descobri músicas que não tiram o meu foco.
A mesma coisa trabalhando. Raramente trabalho ouvindo música ou podcast. Sempre me atrapalha. Em geral, é sempre em silêncio. Isso se chama monotarefa. Uma demanda por vez.
Como aplicar a monotarefa na rotina?
Talvez você esteja pensando aí desse lado: é fácil pra você falar, e eu não consigo controlar todas as variáveis como você.
É, realmente. Eu faço muitas renúncias. Talvez você seja pai ou mãe que chega em casa e tem que cozinhar para o seu filho enquanto coloca a roupa pra lavar e limpa a casa. Talvez você seja jovem e estude dentro do ônibus lotado cheio de gente falando. Realmente, é difícil.
Mais uma vez o meu conselho de sempre é: na medida do possível, adapte tudo isso para sua realidade. Na medida do possível, faça monotarefa. Tem coisas que não podem ser mudadas agora talvez por questão financeira, ambiental. Mas se puder, tire as micro distrações do seu dia.
Esteja presente
Preste atenção na reunião e não mexa em mais nada. Almoce com seus colegas de trabalho ouvindo o que eles têm a dizer. Assista um filme sem pegar no celular. Leia um capítulo de um livro sem mexer no WhatsApp. Deixe poucas abas abertas enquanto trabalha — e se puder, faça uma demanda por vez, priorizando a urgência de cada uma delas.
Esteja presente, e aos poucos, seu foco vai retornar e a sua mente vai desacelerar. A vida terá outro ritmo depois disso.
Faz um tempo já que eu queria escrever esse texto. Essa ideia surgiu depois de observar pessoas lendo enquanto andam no metrô. Nessas horas, me pergunto: ‘’você realmente está prestando atenção nesse livro? Se eu te parar agora, você sabe me dizer o que está acontecendo nessa página?’’. É claro, pode ser que seja um livro de baixa complexidade, talvez não.
Nós vivemos em uma sociedade que gratifica ser multitarefa. Que aplaude quando você esgota seu cérebro e seu emocional ao lidar com milhares de coisas ao mesmo tempo. Isso é totalmente antinatural, — e o oposto de como nosso cérebro funciona.
Até o próximo texto, caro leitor.
— Letícia Souza








